Carla vivia em um pequeno apartamento no Centro Manaus, herança de seus avós. As luzes dos prédios e o ruído constante dos carros faziam parte da rotina diária dela.
Havia algo na vida noturna da cidade, que a fazia sentir-se viva, mesmo com o seu coração partido. Desde que o seu noivo, David, faleceu num trágico acidente, a vida tinha-lhe perdido a sua cor e o seu sabor. Mas continuava em frente, sem mais companhia além da memória de seu amor.
Uma noite, enquanto olhava pela janela, perdida em seus pensamentos, seu celular tocou. Era um número desconhecido. Hesitou, mas na insistência ela atendeu. Uma voz profunda e familiar ressoou do outro lado da linha:
“Carla, sou eu, David.”
O coração dela parou. Era impossível, David tinha morrido! Ela pensou que era uma piada cruel, mas a voz…aquela voz era inconfundível. E insistiu:
“Carla, sei que sentes a minha falta. Estou aqui no espelho! Olha pra mim!”
Confusa e aterrorizada, ela dirigiu-se para o grande espelho veneziano que estava pendurado na sala. No início, ela só viu o reflexo dela. Mas pouco a pouco, a figura de David começou a se materializar por trás dela. Estava exatamente como ela se lembrava, com aquele sorriso que sempre a tinha feito se sentir feliz:
“Como isso é possível?”, murmurou Carla, com seus olhos cheios de lágrimas.
“Não importa como, meu amor! O importante é que agora podemos estar juntos outra vez, nem que seja através do espelho!”, respondeu David com doçura.
Nas semanas seguintes, Carla passou mais e mais tempo em frente ao espelho, conversando com David. Embora soubesse que algo não estava certo, a tristeza e a solidão a empurravam à seguir em frente, com essa estranha relação.
E toda vez que ela estava em frente ao espelho, sentia uma ligação indescritível com ele, como se realmente estivesse lá, do outro lado do vidro.
Mas uma noite, David pediu-lhe algo que a encheu de pavor:
“Vem comigo, Carla! Basta cruzar o espelho e aqui estaremos juntos para sempre.”
Carla, cheia de receios, acariciou a superfície fria do espelho. Sentia uma atração impressionante, como se algo a estivesse empurrando para o outro lado:
“Não posso!”, sussurrou.
David olhou para ela, com olhos cheios de tristeza:
“Se não vieres, estarei preso aqui sozinho para sempre! Não suporto a ideia de estar sem você.”
Então Carla tomou uma decisão: se houvesse alguma chance de estar com ele de novo, aproveitaria, sem se importar com mais nada. Aproximou-se do espelho e, com um último olhar em volta, estendeu a mão.
Ao tocar no espelho, a superfície começou a ondular, como água. Sua mão afundou no vidro e sentiu um frio intenso percorrer seu corpo. Fechou os olhos e deu um passo em frente.
Mas algo não estava certo!
Em vez de sentir o calor de David, sentiu uma pressão imensa, como se o espelho tentasse absorvê-la. Abriu os olhos e viu, com horror, o seu próprio reflexo, que a olhava com um sorriso maligno.
Não era David que a tinha chamado, mas uma versão distorcida de si mesma, presa num mundo sombrio e retorcido. Instintivamente, Carla gritou fervorosamente:
“DEUS, salva-me!!!”
Imediatamente, sua mão desprendeu-se do espelho fazendo, na sequência, ele se partir em mil pedaços. No chão, frustrada e melancólica, Carla chorou dolorosamente. Levantou-se, foi até seu quarto e se atirou na cama, ainda muito sentida. E assim adormeceu.
Num Jardim muito iluminado pelo sol, rodeado por uma natureza exuberante, David a esperava, dizendo:
“Estou bem, querida! Não se engane mais! Siga com sua vida. Um dia nos encontraremos, não como amor de homem e mulher, mas como duas almas que um dia se atraíram e que têm muito a viver ainda, neste Universo”.
Carla acordou… não só deste sonho, mas para tudo: limpou os cacos do espelho, jogou todo ele fora e, como alguém que tira um peso enorme sobre si, saiu muito animada para rua e para a vida.
E agora, sempre que lembrava de David, não sentia melancolia, mas uma intensa vontade de viver!