Meu nome é Roberto Sales e moro no Apuí há muitos anos. Vim de Ji-Paraná, Rondônia, quando o governo federal, através do Incra, doou terras, implementos agrícolas e ajuda financeira para quem quisesse vir para cá, para povoar o município. Chegando aqui, ao invés de agricultura, fui trabalhar tirando resina de pau-rosa, muito mais lucrativo, já que as grandes empresas da França compravam o produto para ser usado em perfumaria.
De manhã saía eu e meu vizinho Arnaldo, goiano, pois tinha e tem muita onça no Apuí, por isso tínhamos que trabalhar sempre de dupla. Enquanto um cortava o pau e jogava na Pajuçara, uma espécie de saco pendurado nas costas feito de um cipó tirado de uma palmeira chamada juçara, o outro ficava com a espingarda pronta vigiando a pintada. No Apuí, onça é igual carapanã.
Assim nós fazíamos todos os dias, até uma vez que, cansados, sentamos um pouco para descansar. Ficamos fumando um porronco e conversando, e não vimos quando ela se aproximou. Só vi quando ela deu uma patada na cabeça do Arnaldo, que afundou o crânio dele.
Era uma Canguçu enorme, daquelas pretas, de coleira branca. Engatilhei meu rifle papo-amarelo e disparei. Ela saiu rolando, atingida na nuca, caindo em um pequeno barranco e ficando lá, deitada. Olhei e vi que ela tinha filhotes. Eram três gatinhos. Não contei dúvida: matei de um por um, descontrolado só ver meu amigo morto.
Fui embora chamar recurso e levaram o Arnaldo para casa. A onça ficou lá apodrecendo. Passados uns três meses, começou a aparecer pegadas de onça na lama, perto de onde construímos uma espécie de corrutela, onde hoje é uma comunidade. Estranhamos porque as onças nunca chegavam perto da povoação, mas aquela insistia.
De repente, dois trabalhadores apareceram mortos, mas estranhamos a onça não os comeu. Apenas o matou por prazer. Fizemos umas armadilhas durante o dia e à noite ficamos de tocaia. Nas duas primeiras noites, nada aconteceu, mas na terceira vimos o mato se mexer e ela apareceu. O fedor de podridão empesteou tudo e vimos aquilo aparecer. Digo aquilo porque era uma onça com olhos de fogo, com os ossos das costelas de fora e uma parte da cabeça só o crânio, totalmente podre, mas viva. Era a mãe cujos gatinhos eu matei, que voltou do inferno para se vingar.
De repente ela sumiu, mas voltou a aparecer todo Dia de Finados para matar. Durante todos esses anos não conseguimos capturá-la. Muita gente aqui não acredita, mas nós, os moradores mais antigos, sabemos que isso é verdade. As pessoas que aparecem mortas, todo mundo pensa que foi onça normal que os matou, mas nós sabemos quem está fazendo isso. No próximo Dia dos Finados vamos tentar tocar fogo nela.