O ano era 2001, quando eu conheci a praia do Açutuba pela primeira vez. Fincada no Iranduba, o local não era como atualmente. Poucas pessoas moravam lá, somente algumas famílias de pescadores e o acesso era muito difícil.
Esqueci de me apresentar. Meu nome é Marcelo Bittencourt, sou de São Paulo, de Jundiaí e vim para Manaus transferido. Conheci no trabalho um amigo que tinha parentes lá no Açutuba e um feriado prolongado, ele me convidou para conhecer a casa dos avós dele. Quando chegamos lá, a casa era de madeira, ampla e alta, com grandes varandas e uma escada bem larga, bem na praia. Era tempo de seca e parecia um paraíso.
A avó dele, dona Palmira, conhecida como “Mãe Velha”, me recebeu com muita alegria e hospitalidade, me oferendo café de um bule enorme e apontou para uma grande panela preta que fervia em um fogão industrial: era uma caldeirada de bodó com cheiro verde e ovos cozidos dentro. Já sabia que me apaixonaria por aquele lugar.
Meu amigo chamado de Dilsinho, por causa do sêo Dilson, avô dele, tinha me dito antes de chegarmos, que sua avó era cigana e sentia as coisas no ar. De noite sentamos na varanda para aproveitar a brisa que soprava do rio e Mãe Velha colocou umas cartas de Tarô na mesa e mandou eu escolher uma. Tirei a primeira e saiu a Torre. Tirei uma segunda e saiu a Morte, tirei uma terceira e saiu o Enforcado. “Aqui sua vida sofrerá uma transformação”, disse ela, “pois todas as três significam mudança de vida”.
Fomos dormir e sonhei um sonho recorrente que me acompanhava desde criança: era de noite e eu entrava em um cemitério abandonado, as sepulturas estavam velhas e quebradas e só havia uma intacta: preta, cheia de musgo azedo, com a estátua de um anjo negro debruçado em cima, chorando. Desde meus 11 anos comecei a sonhar esse sonho e na noite no Açutuba, depois de mais de trinta anos, sonhei novamente.
De manhã, fomos dar um passeio de canoa e passamos por um barranco alto de terras caídas, adiante de onde hoje é o restaurante do Edison. Perguntei o que eram aquelas sombras pretas lá em cima e Dilsinho disse que era um antigo cemitério indígena abandonado. A curiosidade fez com que eu pedisse para irmos até lá em cima. Subimos o barranco caído com grande dificuldade até que chegamos lá. Quando olhei o local, tomei um susto: conhecia aquele lugar. Era o cemitério dos meus sonhos. Corri como se já estive estado alí, dei a volta em uma terra caída e vi. Ele estava lá. O anjo negro, como nos meus sonhos.
Voltamos para casa e contej tudo para eles. Mãe Velha disse que as cartas não mentiam e tínhamos que voltar lá de manhã. No outro dia, bem cedo fomos para lá. Mãe Velha chegou perto da sepultura e começou a entoar um cântico triste na língua romani, entrou em transe e disse que tínhamos que cavar. Sêo Dilson disse que não havia mais nem osso lá, pois ninguém nem sabia há quantos anos aquele cemitério existia, mas Mãe Velha insistiu e começamos a cavar.
Como a terra estava caída não foi difícil chegarmos ao caixão. Por incrível que pareça, eles estava intacto. Abrimos e dentro havia o corpo de uma menina de uns 12 anos, mumificado e de bruços. Mãe Velha revirou os olhos, entrou em transe e quando voltou, sabia de tudo.
Ela disse que a menina foi enterrada viva. Sofria de Catalepsia, uma doença que dá em algumas pessoas mas é temporária. Todos os sinais vitais da pessoa somem, ela fica pálida e com rigidez cadavérica, mas volta ao normal depois de alguns dias. A menina foi enterrada e quando acordou, lutou para sair, sem conseguir. No esforço, virou de bruços mas morreu sufocada
Pegamos seu cadáver, o deitamos na posição de morto, fizemos uma oração, pregamos a tampa do caixão e o enterramos novamente. Voltamos para casa e eu senti uma paz muito grande dentro de mim. De noite, sonhei de novo com o cemitério. Mas ao me aproximar da sepultura vi uma menina sentada em cima da campa. Tinha feições indígenas e com um sorriso de dentes muito brancos, me disse: “Obrigada, amigo de longos anos. Voce libertou minha alma”. Saí andando de costas, chorando, soluçando e com os olhos embaçados, vi o anjo bater as asas e sorrir para mim. Acordei com o travesseiro molhado de lágrimas.
Na terça-feira voltamos para Manaus e eu sabia que minha vida tinha mudado, sabia que eu era outro homem. Antes mulherengo, casei com uma amazonense que me deu uma filha: morena, de dentes brancos e feições indígenas. Minha mulher me disse para escolher o nome e me deu uma relação de nomes. Fiquei de decidir no outro dia. À noite sonhei que voltava ao cemitério, mas ele estava diferente. Tinha cheiro de flores e estava bem cuidado. Me aproximei da sepultura e o anjo estava lá, mas não mais negro, era branco como o mármore. Me aproximei da sepultura e li: “aqui jaz Ulla Ravena”.
Hoje, minha filha tem 12 anos e voltamos ao Açutuba, mas o cemitério não estava mais lá. Uma incorporadora construiu um condomínio de luxo lá. Minha filha ficou triste pois queria conhecer o local, mas eu a consolei: “Não chore, meu amor, minha filha. Isso aqui mudou minha vida”. Saímos alegres, eu, Alice minha esposa, e Ulla Ravena, nossa filha que o céu nos deu.