Há coisas que a gente nunca consegue explicar. Coisas que, mesmo depois de muitos anos, continuam assombrando os cantos mais silenciosos da nossa memória. Esta é uma delas. Meu nome é Maria Miranda, moro no Careiro Castanho, perto de Manaus. Tenho 36 anos e sou mãe do Pedro, meu menino, minha vida. Mas esta história começa bem antes de ele nascer, quando eu ainda era uma jovem cheia de sonhos – e muito apaixonada.
Eu estava noiva do Eduardo, um rapaz que conheci em uma festa. Ele era gentil, engraçado, e tinha aquele jeito de quem parecia entender o mundo melhor do que todo mundo. Ficamos juntos por cinco anos. Planejávamos o casamento, a casa com varanda e os dois filhos que ele sempre dizia que queria ter. Mas tudo isso desmoronou em uma tarde chuvosa de novembro. Eduardo sofreu um acidente de carro numa estrada próxima à Novo Airão. Chovia muito, e o carro derrapou em uma curva.
A notícia chegou como uma pancada surda: ele havia partido. Só tinha 27 anos.O enterro foi num pequeno cemitério aqui do Careiro. Desde então, eu ia lá sempre que podia. Levava flores, sentava no banco de pedra e ficava conversando com ele em pensamento. Às vezes, parecia até que eu ouvia sua risada soprando pelo vento. A vida seguiu. Devagar, mas seguiu.Uns quatro anos depois, conheci outro homem, o pai do meu filho. A relação não deu certo, mas dela nasceu o maior amor da minha vida: Pedro. Um menino doce, esperto, com uns olhos que sempre pareciam mais antigos do que o resto do rosto.
Desde bebê, ele tinha uma calma que às vezes até assustava. Dava a sensação de que ele sabia mais do que dizia. E então, veio o dia.Pedro tinha 4 anos. Era um domingo de sol, e resolvi levá-lo pela primeira vez ao cemitério para visitar o túmulo de Eduardo. Achei que não teria problema. Ele não sabia ler, não sabia de nada do passado. Para ele, seria só um passeio com a mãe.Subimos a ladeira devagar. O cemitério estava silencioso, como sempre. Fui até o túmulo, ajeitei as flores novas e fiquei em silêncio, lembrando. Pedro ficou ao meu lado, calado também, olhando ao redor com curiosidade.
E então ele parou. Ficou imóvel.Levantou o dedinho e apontou para algo atrás de mim. Seus olhos se arregalaram e um sorriso leve surgiu no rosto. Eu me virei rápido… mas não vi nada.“Mãe… ele é meu pai.”, ele disse, com a maior naturalidade do mundo. Meu coração gelou.“Como é que é, filho?”, perguntei, tentando sorrir. “Ele. O homem que estava aqui. Ele é meu pai. Ele me cuida. “Filho, não… seu pai é outro. Aquele que você já conhece, lembra?” Mas ele insistiu. Não com teimosia de criança. Com certeza. Como quem afirma que o céu é azul. “Não, mãe. É ele sim. Eu conheço ele de antes.”
Não consigo descrever o que senti naquele momento. Foi como se o tempo parasse. Como se o ar ao nosso redor tivesse mudado de temperatura. Meu estômago virou gelo. Meu peito apertou. E por um instante, juro… senti o cheiro do perfume do Eduardo. Aquele mesmo que ele usava nos nossos encontros. Pedro voltou a brincar com as folhas e eu fiquei ali, olhando para o túmulo com outros olhos. Era como se, de alguma forma, ele nunca tivesse ido embora. Como se uma parte dele tivesse esperado por mim…ou por nós.
Com o passar dos anos, Pedro continuou crescendo com aquela serenidade estranha. Às vezes, fazia comentários que me deixavam arrepiada. Uma vez, me viu chorando sozinha e disse: “Não fica triste, mãe. Ele ainda gosta muito de você. ”Eu nunca falei o nome do Eduardo para ele. Nunca mostrei fotos. Mas certa noite, encontrei Pedro folheando um álbum antigo que estava guardado no fundo do armário. Quando viu uma foto de Eduardo, parou e sorriu. “É ele, mãe. O homem do cemitério. Eu sonhava com ele antes de nascer”. No aniversário de 9 anos de Pedro, ele ganhou um brinquedo que gravava voz. Um microfone de plástico com um gravador interno. Ele passou o dia inteiro brincando, rindo, cantando.
À noite, fomos ouvir as gravações. Entre as risadas e músicas, havia um trecho em que ele conversava com alguém. Só que ninguém mais estava no quarto. E então, ouvimos uma voz grave, baixa, que sussurrava: “Cuida bem dela… agora é com você” Eu não consegui dormir naquela noite. Mas, pela primeira vez em anos, sorri chorando.Porque agora eu sabia: Eduardo nunca nos deixou. E talvez, só talvez…o amor verdadeiro encontre sempre um caminho para voltar.